segunda-feira, 30 de junho de 2008



200 Anos da Costa-Nova

(Conclusão)









O Blog« 200 Anos da Costa-Nova» chegou, hoje, ao fim.



Justifica-se uma explicação.

A história fica (assim) contada até aos anos 60/70.Porque em nosso entender, a Costa-Nova, a partir desse tempo não tem mais «história» para contar. Talvez porque falta a necessária distância, ao tempo, para dele fazer «história».

Mas é indiscutível que a Costa-Nova continua a ter, apesar de todos as agressões que vêm sendo levadas a cabo sobre a sua paisagem natural – ria –, ou sobre a sua paisagem urbana –o descalabro imobiliário consentido – ainda, algo de singular e característico.










Seria pois falta não registar e não enlevar, essa imagem de marca. Assim, na edição do livro que prepararemos – assim apareçam alguns apoios – essa singularidade aparecerá contada por imagens, inserida nas páginas que abrirão cada um dos 15 capítulos que compõem o trabalho. Imagens seleccionadas, apostas em formatação dupla, que realçarão o que resta de belo –e único! – ainda existente neste rincão nascido da vontade de gentes que foram, elas também, em tudo singulares.






Este Blog tem, ele próprio, uma estória :-foi feito …fazendo-se dia a dia a correr atrás da lebre. Significa que agora há que o retocar.Com tempo e paciência










A todos quantos cederam fotografias – recolheram-se mais de duas centenas !–o nosso obrigado.

Senos da Fonseca





FIM

(NB-As fotografias acima são da autoria de Paulo Pereira)

domingo, 29 de junho de 2008










200 Anos da Costa-Nova



(Fascículo 27)

15- ÍCONES DA COSTA-NOVA


15.1- JOSÉ BARRETO ou «LUIS DA BERNARDA»

Fundador da Costa-Nova e o seu verdadeiro Patriarca.
Fazia parte de uma família de pescadores, dos quais muitos migraram, litoral abaixo em procura de melhor pousio.
Ao tempo em que era Arrais da sua Companha encetou negociações com pescadores instalados em Lisboa, negociando na compra e venda de pescado.
Em Aveiro abre uma venda de aprestos navais.
O apelido Bernarda vem do lado de sua mãe, pescadeira, conhecida por Ti Bernarda «a Victória».
Infelizmente não existe uma única menção que relembre o seu nome como demiurgo do local.


15.2- ARRAIS ANÇÃ (1845-1930)

É Guilhermino Ramalheira que nos fala [1]desse herói - o arrais Ançã - que em Outubro de 1886 arranca trinta e uma vidas francesas, subtraídas às garras do “cão danado”- era assim que o arrais tratava o mar - feito que lhe mereceu a outorga da medalha de ouro concedida pelo Governo Francês, e outras duas - a de prata e a de ouro -, que ao Ançã foram atribuídas pelo Governo Português e que Lhe foram entregues pessoalmente por El-Rei D.Carlos, como recompensa de tantos e tão enormes feitos praticados por aquele «bravo». Que “à humanidade emprestou o mais brutal e formidável exemplo de demência heróica”[2]; de quem o mar nunca teria zombado.
Alto como um mastro de galera, carão moreno, tisnado pelo sol, encardido pela maresia, cinzelado de sulcos que a barba calafetava discretamente, sorriso doce e ingénuo como o de todas as crianças, de todos os heróis assim nos descreve o arrais, António Cértima.

- O arrais Ançã

Colega de carteira na escola primária de Alexandre da Conceição, este dedicava-lhe grande amizade, visitando-o frequentemente. Pretendeu,mesmo, levá-lo para remador do seu barco, quando o «poeta» foi Director do Porto da Figueira.
O arrais viria a falecer, pobre, em Ílhavo, a 23 de Fevereiro de 1930.
O seu busto foi, como referido, colocado no local do primeiro mercado da Costa-Nova ali ao lado da «Marisqueira».


15.3- ANTÓNIO GOMES DA BENTA

Em 18 de Setembro de 1876, este arrojado Arrais,em dia em que um espesso nevoeiro enegrecia o céu e impedia um barco com 35 tripulantes de varar na praia, quando um vagalhão caiu sobre ele, alagando-o e quebrando-lhe o cabo da barca, ficando sem leme, prestes a virar, eis que da assistência se destaca um homem que se atira ao mar levando consigo um cabo que é necessário prender ao arganéo. Luta gigante em que o Benta mergulha enlaçando-o; mas quando volta à superfície uma vaga atira-o contra o costado da embarcação. Três companheiros (O Naia, o Patacão e o Francisco da Cruz) atiram-se, eles também ao mar e amparam o António da Benta que salta para o barco e dirige a manobra até o varar na praia com toda a tripulação salva.
As honrarias são muitas: do Sr. Pinto Mesquita que lhe entrega 25$000 reis. A Associação de Instrução Popular de Coimbra que lhe atribuiu o titulo de sócio benemérito e de S.Alteza o Senhor D.Luiz que por decreto o condecora com uma medalha de ouro e tença anual.

Muitos outros arrais - «O Batata», «O Cajeira», «O Parracho», eram homens de respeito na borda do mar: valentes a defrontar o mar, afoitos em dominar os ventos, o braço forte, habituado a submeter ao seu poder varonil o arremesso das tempestades. O Mar obedecia-lhes …
E muitos… muitos outros, todos constituíram uma verdadeira plêia de homens de arrojada audácia a desafiarem o endemoninhado Atlântico…
Mas se a maior parte eram homens, também a Costa-Nova tem as suas figuras femininas. Umas em constante cirandar a dar braço à rede ou à soga dos bois; outras metidas até ao joelho na sacada, a atulhar os xalabares na separação do peixe.

Outras juntaram à presença o desempenho corajoso de tarefas onde ombrearam com a firmeza daqueles, no mourejo, na ausência de temor, no desembaraço do seu braço, como foi o caso da


15.4- JOANA CÀLÔA

…. que outorgou para si o epíteto de «ARRAISA».

Era uma mulher que para lá de ser muito activa, despachada e trabalhadeira, tinha a seu encargo o desempenho do cargo de «arraisa» - ou governadora[3]- de terra, a quem eram remetidas as tarefas de orientação da Companha. Assim, era seu mister cuidar da reparação das redes,do barco e aprestos, encascar o redame, olhar pelo tratamento dos animais, gerir o pessoal, e prover dedicada e especial atenção a todas as tarefas concernentes à separação, venda e despacho do peixe capturado.
Mulher fisicamente poderosa, mas simultaneamente bonita, airosa e prazenteira, tinha a elegância curva e estendida da proa do meia-lua. Braços longilíneos e poderosos a parecerem os remos do Xávega; olhos escuros, profundos, onde se acolhia o turbilhão do mar e de onde ressaltava a grande coragem que a levava a não hesitar, na falta de um tripulante, a emprestar uma mão ao cambão, remando como um maior. E à falta de reçoeiro, era ver a Joana a embarcar no meia-lua, não lhe faltando, nem jeito nem força, e muito menos quebreira, para o ir largando como mandavam as regras.
Naquele tempo havia o direito de primazia[4]: - o da escolha do campo de pesca, que era concedido ao primeiro barco que fosse para o mar. Joana - a arraisa - mais do que uma vez não hesitou, perante a demora do seu arrais, em desafiar três camaradas a embarcar com ela na robaleira e, levando a bandeira da Companha, colocar-se no local que ficava, assim, reservado para os barcos da sua Companha.Filha do António da Quinta (do Cons. Luís Magalhães, porventura?), era mãe de quatro filhos, todos eles tendo um nome diferente (Manuel da Barbeira, mais tarde conhecido por cap. Pisco, Francisco Càlão, mais tarde o Cap. F. Càlão, David - oficial da Marinha Mercante que morreu muito cedo - e D. Nazaré Marques). Todos eram, contudo, filhos de seu marido João Simões da Barbeira (O Pisco).





A «arraisa» Joana «CÀLÔA»


Mulher muito bonita e esmerada, era desempoeirada, muito mexida e ágil na lide, além de ser mulher de enorme ânimo e decisão.
Conta-se dela a seguinte história.
A Joana Càlôa ia usualmente levar o peixe branco a uma pensão a Aveiro. Debaixo dos Arcos postava-se, por vezes, um senhor bem vestido, de paletó, chapéu e bengala, a que não faltavam ares de alguma distinção. Sempre que a Joana passava com a sacola do peixe no regaço, o fidalgote não se escusava em dispensar um piropo atrevido à Joana. Que à primeira ouviu, o que pouco a importunou nem lhe deu crèto, pois mulher séria não tem ouvidos. Só que a cena repetiu-se, num escaramento atrevido, e era impossível à Càlôa fazer de conta que não ouvia o peralvilho, quinté parecia augado, e já começava a inquisilar. Por isso à terceira, parou, olhou o fidalgote de alto a baixo, desatou o lenço e foi-se à bolsa de onde tirou a navalha de estripar o porfírio[5]. E mostrando a lâmina afiadinha disse:
Crendas ver? Ó malino! Queras ficar com uma boca em baixo igual à de cima, só que ao alto, seu desbocado simprinhas? Queras frescura?... olha aqui vai -e agarrando na alcofa achapou o peixe para cima do mancatrufe, deixando-o a escorrer nhanha.
E a Joana lá foi à Pensão contar o sucedido de, nesse dia, não haver peixe.. Só que passados uns tempos, o patrão da Companha , o Sr. Cruz, grande amigo da família de Joana lhe veio dizer:
-Ah Joana!.., cachopa. Que fizestas tu ao Sr. Dr. Juiz, rapariga? Tu vais presa!...,pois atão não queiras lá ver que o pintiparado era oDr Juiz,raios…
- Ora… ora Ti Cruz: se é juiz que não achaque e falte ao respeito a quem passa.

E o certo é que não houve qualquer atitude do Juiz sobre a Joana, antes passou a olhá-la com o máximo respeito e educação.

Conta-se que durante uma ida a Lisboa numa representação da Companha, o rei D. Carlos teria reparado na esbelteza da Joana, e logo pretendeu que ela ficasse açafata do Príncipe D. Manuel.
Joana não mostrou grande interesse no convite, apesar da Rainha, ao que parece, ter prometido emprego ao marido da Joana, nos iates reais.
Mas era precisamente este quem insistia com a Joana para não ela não aceitar o cargo. E entre vários pedidos sempre lhe dizia:
- Não vás Joana. E ósdepois quem me faz o laço da gravata, mulher?!
Joana não foi. E assentou para sempre arraiais na Costa-Nova, onde fez palheiro. Que hoje ainda existe, pertença de uma sua bisneta, que o recuperou na sua cor ôcre, de origem



O Palheiro de Joana Càlôa (Bela-Vista)

De onde teria vindo a alcunha, que depois e seguidamente deu origem, como tantas outras, a nome de família, mantido de geração em geração? Não se sabe ao certo, mas não andará longe aquele que imaginar, possa, assim ter acontecido:


- Eh Toino…Simprinhas de um raio; mexe-te raios!… esperneia aí esse càlão[6] .
- Esperneava, esperneava se fosse uma «càlôa» em vez do «càlão», «ti Joana»…
- C’al-te home !…come auga e bebe areia p’ra matares a fome…engelhado…

E assim foi bautizada, a Joana, no corrume da vida de pescadeira da borda.

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1 Ramalheira,Guilhermino in «Arrais Ançã»

[2] Maia Alcoforado in Ílhavo Terra Maruja - Marujos da Terra dos «Ílhavos»

[3] Estender as alças do càlão.
[3] Os trabalhos das mulheres na Companha, eram vários, e alguns bem esforçados e penosos: juntar as redes, levá-las para o barco, empurrar com a muleta, escolher o peixe, etc.
[4] Dá-se conta que oficialmente o direito de primazia teria terminado em 1861. Contudo as Companhas instituíam, e respeitavam, a costumeira, e nem o próprio Arrais podia mexer nos hábitos, costumes e privilégios antigos, que assim se mantinham muitos anos para lá das posturas camarárias.
[5] Porfírio é o cabo que fechava a coada (saco da rede). Era ao arrais que competia esventrá-lo.
[6] Càlão - peça de madeira ligada às mangas da rede, com alça, onde se vão ligar o reçoeiro e ou
a mão da barca.




quinta-feira, 26 de junho de 2008





200 Anos da Costa-Nova

(capítulo 26)

14 - Acontecimento insólito: O « DESERTAS»

Em finais de 1916 a «aterragem» de um navio de apreciáveis dimensões (comp.112,4m, boca 12,7m e pontal 7,8m), com capacidade para embarcar nos seus porões 6.700 tons de carga geral, veio alvoroçar os que na praia se entregavam às diversas fainas, na borda; mesmo com a época balnear, acabada, desde logo o acontecimento, que ocupou primeiras páginas na comunicação social da época, faria atrair muitos curiosos, interessados pelo insólito, atraídos pelo mistério que se dizia envolver o navio, recentemente apresado pelo Estado português aos alemães, como despojo da primeira guerra mundial, a decorrer, e onde participávamos. O nome da embarcação foi então mudado de “Hochfeld” para “Desertas”.



O «Desertas» encalhado na praia

A saga do «Desertas» sob a bandeira portuguesa estava prestes a começar, pois o navio com o mau tempo, tinha vindo a descair sobre a praia por dificuldades de condições de navegabilidade, depois de se ter mantido ao largo de Leixões, tentando a entrada naquele Porto. E sempre a descair tinha vindo meter-se pelo areal dentro, evitando males piores à tripulação que saltou para terra, pondo-se a salvo.
O local do encalhe, situado a sul da Costa-Nova, distando cerca de meia milha do local das Companhas, de fácil acesso, permitiu desde logo encarar como viável o esforço para a sua recuperação, sendo para o efeito equacionadas diversas soluções, assumindo-se que a mesma seria levada a cabo pela companhia seguradora em acordo com o armador (inglês). Seria encargo do nosso país, apenas e só, o fornecimento de pessoal para a tarefa de salvamento, e para mais uma ou outra facilidade. Algumas (ténues) e pouco esforçadas tentativas de safar o navio, directamente para o mar, goraram-se, apesar de em determinada altura o mesmo ter flutuado, o que não foi aproveitado para se proceder ao seu reboque para o largo. O desinteresse dos ingleses, e o valor do navio em época pós-guerra, em que o aço era matéria rara e cara, levou o Governo Português a assumir o seu salvamento, usando para o efeito, técnicos e meios, nacionais. Abandonada a hipótese de saída directa para o mar, gizou-se um plano que consistia estabelecer um canal de ligação com a ria (que teria de ter uma dimensão de aprox. 1.000 metros, e uma largura não inferior a 30m), por onde o navio poderia alcançar a Barra de Aveiro.
E enquanto se protegia o navio do assédio do mar, numa costa muito






O «Desertas» a ser fustigado

exposta a esse factor, eram criadas condições para o endireitar, afim de lhe tapar alguns rombos e dar início aos trabalhos de dragagem na língua de areia, feitos com grande alvoroço pela draga «Mondego», requisitada para esse efeito. Todo este estendal de máquinas, material e pessoal, atrairia centenas de curiosos que vinham dar uma espreitadela ao decurso dos trabalhos, seguindo todos os passos e as peripécias dos mesmos, pois que estes prosseguiam dia e noite, feitos sem paragens, no intuito de não exceder o valor orçamentado para o custo dos mesmos: 115.000$00 (cento e quinze mil escudos) para a libertação do navio e 160.000$00 (cento e sessenta mil escudos) para as primeiras reparações. Perante a complexidade da tarefa, dava-se como provável o aparecimento de alguns trabalhos, não previsíveis à partida, para o que se orçou um valor para os mesmos: 22.000$00 (vinte e dois mil escudos). Pena foi que muitos imprevistos e a longa duração da operação tenham elevado para cerca de 700.000$00 (setecentos mil escudos!), os custos acima referidos.
Só iniciados em 3 de Julho de 1918 (quase dois anos após o encalhe) os trabalhos, já depois da embarcação ter suportado violento temporal que a danificou, o certo é que em 78 dias de trabalho o canal ficou apto para a segunda fase dos trabalhos, que consistia no embarque do «Desertas» no mesmo.


O Desertas a entrar no canal

Inesperadamente - ou não tanto - pois constava que tinham sido por diversas vezes avistados submarinos alemães, a pairar ao largo, o navio foi bombardeado do lado do mar. Para lá do estardalhaço da fuzilaria, logo foram postas a correr as mais diversas e desencontradas noticias, que incluíam a hipótese (que foi suportada ao longo dos anos) de o navio estar carregado nos seus porões com bombas de um tipo ainda secreto, que os alemães não desejariam deixar cair em mãos inimigas. O que era um perfeita especulação, pois o navio tinha sido descarregado e reparado, após aprisionamento, em Lisboa.




O«Desertas» na Bacia

A fuzilaria levou à debandada do pessoal e mesmo os veraneantes (estávamos na época alta) desataram num frenesim de fuga, pois que entretanto hidroaviões estacionados em S. Jacinto tinham levantado voo, e vindo atacar um outro submarino que fazia parte a matilha de submersíveis que pretendia destruir o «Desertas». Do mar as hipóteses de um submarino acertar no navio eram restritas, e muito mais quando acossado; à cautela e para defesa em caso de repetição da tentativa foi montada uma peça de artilharia na praia, no local dos trabalhos, que poderia ser muito eficaz na retaliação.Bateiras, barcas ou a estrada para a Barra, todos os meios e caminhos foram utilizados para fugir ao que se pensava poder redundar num ataque às populações estacionadas na Costa-Nova, como retaliação, conforme constava nos meios germanófilos.




O «Desertas» frente à Costa-Nova

Acalmada a situação e mesmo perante contrariedade de monta provocada por forte temporal, verificado em Setembro do referido ano, e que obrigou a novos trabalhos de recuperação na zona dragada, o certo é que em Novembro o navio foi acolhido na bacia dragada, onde tudo estava preparado para o reparar e preparar a sua estabilidade, para se iniciar a curta (dez a doze dias, previa-se) viagem até ao forte da Barra.
Constatado, entretanto - com algum espanto! - um erro na pré avaliação do calado, verificou-se que mesmo na melhor das hipóteses haveria que levar a cabo intervenções em diversos pontos da ria, especialmente em frente da Costa-Nova (onde se encontraram fundos de 0,90m, quando eram precisos cerca de 3,5m), para que o navio chegasse à barra.



O «Desertas» visto do «Arrais Ançã»

S
ó em frente da praia foi preciso dragar numa extensão de cerca de dois mil metros. Os dez a doze dias previstos para a curta viagem do Desertas até à Barra, transformaram-se em longos oito meses, para gáudio de mirones, fotógrafos, comunicação social e outros, que solicitados por um espectáculo parecido ao de um elefante metido em jaula, acorriam, conferindo um movimento desusado à praia, conferindo nome e notoriedade e ainda mais peculiaridade à que, já então, era motivo de exalte pelas belezas naturais da sua paisagem: natural e humana.
Ultrapassada a zona da praia em 5 de Outubro de 1919, foi só em fins de Janeiro de 1920 que o navio chegou à ponte, que tendo já sido cortada para dar passagem à draga «Mondego», foi de novo, em 20 de Janeiro do referido ano, interrompida, para dar lugar, agora, à passagem do navio. Que finalmente foi fundear em frente de S.Jacinto, e de onde levantou ferro, em 20 de Março de 1920, seguindo depois para Lisboa.






O «Desertas» finalmente fundeado em S. Jacinto





Terminara um episódio que iria ter muito importância para o desenvolvimento da Costa-Nova. Por um lado o longo período em que se desenvolveram os trabalhos trouxeram movimento e geraram riqueza nos botequins locais. Para lá dos que intervieram directamente nos trabalhos, juntaram-se ao corrupio, os curiosos que permanentemente acorreram, motivados pelo insólito dos trabalhos, e para admirar e registar um acontecimento histórico, irrepetível.
Mas se algumas contrariedades, acarretou o salvamento do navio - como foi, por exemplo, o depósito dos dragados - certo é que o «canal do Desertas», como se designou até à década de 70, foi o baú de riqueza de que se alimentaram gerações de pescadores da chincha, na ria. E por ele passaram, mesmo nas marés baixas, os «moliceiros» em demanda do norte para ao outro dia comparecerem à faina, a fim de não faltarem aos lavradores da borda com o húmus que alimentava e transformava as areias em verdadeiros campos de pão. E foi por ele, que mais prosaicamente navegaram centenas de embarcações de recreio, elegendo a Costa-Nova como um idílico local de lazer náutico, que fez acorrer gerações e gerações à ria, para, quaisquer que fossem as condições de maré, velejarem à vontade com os seus «Vougas» - feitos à sua medida! - em deambulações vadias.




quarta-feira, 25 de junho de 2008







200 Anos da Costa-Nova

(capítulo 26)

13.4- A Fé e o Pagão

A todo este grupo de figuras míticas, deuses do mar, não faltava a Fé onde depositavam todo o cabedal de esperanças numa boa pescaria, ou na salvação dos perigos que correm, amiúde, pedindo, devotos, pela «fortuna» dos seus, entregando-se crentes à missa diária na Capelinha da Nª Senhora da Saúde[1], repetindo promessas de uma velinha aquando do último domingo de Setembro, não vá a Senhora pensar que «Dela» se teriam esquecido. À cautela, crentes mas desconfiados - não vão os outros oráculos das redondezas esquecerem-se, ou tomarem-se de «ciumeira» -, vá de prometerem uma ida ao S.Paio - o cavaleiro do mar! - na primeira semana de Setembro; e uma outra, à Srª da Maluca, cumprindo a dádiva de uns parcos «reises» e uma visita à festa de arromba. Assim, é cumprido o ciclo das festividades dos oráculos da ria, visitados obrigatoriamente em dias em que se esquece a labuta e seus perigos, dias de diversão, da cestada de boa traganeira e adequado conduto. Mai-lo capão bem dourado no forno que irá ser regado a boa pinga verdasca - o vinho do enforcado[2]- levado em pipo ou garrafão, na bateira, que ficará fundeada ou varada na praia, até ao «fogo de lágrimas» da despedida que marcará o encerramento das festividades. Amanhã é novo dia de lanço... há que regressar lesto… Três dias de festa rija… de estoiro…

Ex- Votos Arrais «Parracho»


Na Costa-Nova os festejos em honra da Srª da Saúde, iniciados em 1837,








Armações da Srª da Saúde

vieram substituir a primitiva festa de S. Pedro, em Ílhavo - tornando-se a festa das Companhas - passando a ter data fixa, no último domingo do mês de Setembro. Competia em popularidade com o S.Paio ou com o S Tomé, na magnificência da animação dos festejos lagunares, no corropio de gentes, na algazarra, na singularidade do encontro de gentes da borda d’água que muitas vezes aproveitavam a festa para «trautos» de picardia num «regabofe» tumultuoso que invariavelmente terminava com um copo de três emborcado na venda mais próxima. Do norte do «Bico» ao sul da «mota», o espraiado engalanava-se com o «estendal» de Moliceiros carregados com gentio da laguna e seus familiares.




Moliceiros na Srª da Saúde

muitos deles transportando no seu bojo, melões e melancias, criadas lá para os lados do canal de Ovar - nas «Quintas do Norte» - aproveitando-se a romaria para os transaccionar.
Na Capelinha havia «Te Deum», missa solene e sermonário apropriado.






Arraial da Sr.ª da Saúde


Reunidos e alinhados os andores dos santos no adro, no areal, organizava-se uma concorrida procissão passeando os oragos postados lá no alto dos seus andores, emergindo de um verdadeiro campo de flores, de cores muito vivas. O séquito de fiéis devotos fazia-se acompanhar de filarmónica, que marcava o passo e dava ênfase e cerimonial, ao desfile, percorrendo as ruelas da praia engalanadas por arcos, aqui e ali, o chão coberto de erva-doce à mistura com junco. Das varandas caíam colgaduras adamadas, onde debruçados, os proprietários e convidados assistiam, privilegiadamente, ao desfile. Um numeroso grupo de fiéis fazia questão de se incorporar no mesmo; crianças empunhando símbolos marítimos (ancoras, bóias, barquinhos), e ou até adultos em traje esmerado de pescador, levando na mão espórtula prometida em momento de mais apuro. De quando em vez subia no ar um foguete ribombando estrondosamente, conferindo um aspecto festivo, alegre, à expressão pagã do desfile.
Dada a volta à praia recolhiam os santos aos seus altares.
Terminado o momento alto dos festejos, o passeio ribeirinho pejava-se de gentiaga em passeio por entre as vendas de comes e bebes ou de doçaria local: -suspiros, cavacas, regueifas, e muita outra de refinado e doce paladar.
À noite, a festa encerrava com deslumbrante fogo de artificio atirado sobre a Ria, inundando-a com mil e uma cores fugidias, que lhe envaideciam o estro, fustigando os olhares enfeitiçados dos festejeiros, emprisionados nos cachos de miríades de gotas estreladas que pareciam brotar dos céus, descendo em cascata sobre as águas.

Fogo de artificio

A festa corria até altas horas.
Ao outro dia, enquanto os visitantes partiam recolhendo à canseira da vida, era tempo dos veraneantes agruparem a tralha preparando-se, depois de recompostos os humores pela cura estival e recuperados das fadigas, também eles, a iniciarem um novo ano de mourejo. A Costa-Nova, cansada de tanta orgia estival parecia querer empontar-se daqueles figurantes, e deles se despedir: - até para o ano.


_________________________________
[1] Os pescadores, gente de grande devoção, iam nos primeiros tempos ouvir missa à Vagueira à Capela da Nª Srª da Conceição. Em 1822(4) por iniciativa de Frei José Pachão, ergue-se por subscrição das gentes e das Companhas, uma primeira capela de tábuas coberta por colmo, que mais tarde será substituída pela Capelinha da Srª da Saúde, erguida em 1890 desta vez por iniciativa de José da Graça, gerente de uma das Companhas, capela que ainda hoje existe.
[2] O crisma advém de ser produzido em latadas, local onde muitos preferiram ajustar as contas finais com a vida.























terça-feira, 24 de junho de 2008




200 anos da Costa-Nova
(Fascículo 25)
13.3 - O Falar

Todas as comunidades piscatórias da beira-mar tinham um característico e singular modo - e jeito - no falar, usando uma terminologia muito própria, com dizeres familiares, simples e sadios (bem) adaptados às circunstâncias, por vezes ornados de pitosa brejeirice num linguarejar fácil, pleno de vocábulos «inquinados» pela ausência de outra instrução, que não a tida no mourejar de uma vida de labuta.
Procuramos recordar alguns deles numa recriada conversa que duas pescadeiras, a Rosa do Arnal e a Ti Maria «do Calatró» tiveram, quando no esfalfo da lideira, de canastra à cabeça, de manhãzinha, vinham em passo lesto vender à vila.
A Estrada da Mota

-Ah!, chopa,… Maria!… «atão» «disque» c’a Josefa do Tarinca lá de cima, a «fidalgota», deu pra «contribar» o casório da sua Luísa com o «Toino» Labareda?... aquilo é que m’a saiu uma «mancatufe»…
- Assim o dizes, rapariga… «Canté» (?!): - o que c’ria a «inchada»?!… o rapaz a modos não é nada «cible», nem é nada «calamantrão», muito menos um «simpras», pois inté nem parece nada um «caminé botadinho à boa parte»… Não senhor, «crendas» lá ver o «estendal» que o pai do Toino fez ; «apracia banéga ao rossaló»… o estipôr.
- S’ta p’rece…o coitado do rapaz não é um «mal catufo»… «nem ó vida!»… mulher; e «inté» dizem que tem umas «ecolomias»
- Tens rezão cachopa… O «Toino» Lav’reda não é nada «xana» n’a senhor ; c’a o meu Zé, Deus lhe dê «voa biaje» - venza-o Cristo e S.Savastião, trê abés e um pai nosso - diz, inté!, q’é um bom «reçoeiro», nada como «oitros zamparilhas» que não maneiam o cú no safar da rede ; o arrais Tomé da catralga já o embarcou de «camboeiro» e ele «astreveu-se na t’refa». A Luísa que parece uma «tísica» - deus me perdoe!,… em nome do Pai, Filho Esp’rito Santo… - inté ia «vem…vem». Quisera-o pr’á minha, que «vem» o merecia… que eu fazia uma festa de «arromba» com «zabumba» e tudo…

- «Cal-te óspois» aí... vai mulher…, andas desocupada dessa cabeça... deixa a cachopa q’ela chegada a hora tem muito quem lhe meta as três «cavernas» adentro… «inté p’reces augada».
- Tendas razão - que ao «labaró» é que as coisas se fazem «d’reitas»… e ele anda p’ra aí tanto «mancatrefe», tantos «langões»… nosso senhor, «libre-nos» S. Bartolomeu e as Alminhas da Toira.
- É assim mesmo, anda p’aí a «inquisitar», ca qualquer dia, um «zamparilho» apanha-a de costas, e vai com’a lâmpada : só «c’o viés» de ficar limpa como a Igreja do Prior Zé, deixa-a de barriga maior que a sardinha da «desoba» ; anda aí tanto «pixano» e ela parece bem «augada» do «ca tu sabes»… É «simpras»,… mas gulosa.
- … «Mogadinha de mim» se isso «assuceder»… é uma «restrabulha»… «astrevesse-se» algum, c’a o pai faz um «serrafaçal» que levava tudo na frente… Olha c’a «fúfia» da Zefa lá de cima, quando o Pª Morgado lha disse c’o rapaz não era um «probezinho», «quinté» tinha uma chincha, a «merdrosa arrespondeu-lhe» “Olhe senhor abade, «inté o TI ESSE», tem uma chincha”… «asfazer» pouco dos nossos homes, a «fúfia»! E não lhe deu mais «corrume» nenhum… c’o abade desandou inxerido com o frieldade da Zefa.
- Olha sabas o que te digo : - A Zefa é uma «opiniática» mal “cosida”... preceves?
- Ah mulher, cal’te sua desbocada : - «u c’astás» tu p’ra aí a dizer…
- É o que lhe digo Ti Maria, se fosse como aqui a cachopa “c’a té tenho «calo» dos trimbaldes do meu Zé, de tanto me vaterem nas «náudegas»”…
- Ah! mulher de «labishomme» q’uessas coisas n’a se apregoam com’a sardinha c’aí levas… depois, s’é fraca - dizem que é «ogalho» a ti…
- Conversas... sabe o «ca penso»?! ; a Luisinha na tinha era remada pró Toino, «q’ué cá dos noissos», e quando chegada a hora de meter o remo ao «escalamão», «aborregava». E o rapaz c’a dizem ser «píxaro» e «pediqueiro» de saias, inda ficava a ver navios… «esmorcegava-se toido».
- «Cal-te aí…» oh! alma penada, não digas isso... que «t’a podem oibir» raios… de estrafego!… olha vamos é «avusacar» aqui um bocado, aproveitar para «escofenar» o peixe, «c’a óspois» na «benda» é uma «fona» e a «gadagem» d’ibalho diz c’andámos ao «mal mainço» por aí, «inbez» de vir a «d’reito»…
- Olha, «cal’te» que vem ali a Josefa…
……………………………………………………………..………….
- Boas tardes Sra. Josefa…
- sorri prazenteira a Ti Maria, chegada à faladura com a Zefa … - «Nóis» a falar dos santos e eles «oprecem». «Vons olhos a beijam»… a sua Luisinha?... cada vez mais bonita… a santa!… a Srª do Pranto lhe dê um fidalgo da sua igualha, c’a bem «m’rece» a «coitadinha» : Olhe Srª Zefa, quer sardinha da nossa, «bibinha a vrilhar» como um «buzelicum» - olhe «c’inda ri» - viemos numa «corriola» p’rà trazer fresquinha «com’ àuga»…
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Eram assim estas mulheres d’Ìlhavo. Vivas, despachadas e asseadas; umas «moironas de afadigação» p’ra chegarem aos primeiros lanços do «lusco fusco», mulheres com o seu «creto», tementes a Deus e aos Santos, humildes e honradas; «faladeiras». Delas se dizia: “morrendas se não falendas”


segunda-feira, 23 de junho de 2008




200 Anos da Costa-Nova


(fascículo 24)

13.2- Os Borda-d’água

A discussão em volta do círculo onde se fazia o repasto: - porque aquela gente das Companhas não se sabia fazer ouvir baixo, fosse porque quem fala alto tem sempre razão, fosse com medo que o marulhar do mar lhe comesse os sons e lhe «abortasse» a ordem, versava não só o azar ou a sorte da pescaria do dia, as peripécias do lanço, mas e também, as previsões sobre o tempo que faria «amanhã». O pescador sabia ler o tempo e ver nos sinais que vão acontecendo, deles retirando as conclusões para o que o espera, amanhã, em nova arremetida. É um saber adquirido - e transmitido - de geração em geração, passada de boca em boca, de pais para filhos, expresso em rimas a preceito.
Absorto, perscrutando insistentemente o mar e o céu, barrete enfiado na cabeça, escupindo a «sarreta» que lhe unguenta a boca, atento na «lua trovejada» augoirando que «trinta dias será molhada», espera que não venha com vento pois, é certo, «com vento do leste não dá nada que preste». A lua e as suas posições servem-lhe para calcular a prenhez da companheira, mas e também lhe indiciam o estado do mar: - «lua fraca»… «o tempo irá mudar», pensa… e logo inspira a cachimbada, sorrindo-se do tempo adivinhado.
Mas se o «vento norte é rijão, chuva virá à mão»; se for suão, «de inverno sim, de verão não».
Se ao pôr do sol estiver «vermelho no mar»… certo que haverá «sol de rachar».
Quando lá longe vê uma ave que se aproxima e lhe desperta a atenção, logo siloqueia: «em terra a gaivota... é que o temporal a enxota»...; mas se descortina «estrelas a brilhar», então, «marinheiro, vai para o mar». Se «a manhã vem com arco»… «mal vai o barco» e se há «miragem que espante»… teremos… «vento de levante». À noite «trovão solto, no céu reboa»… «violento temporal, nos apregoa»
Dá de «emborcar» mais um copo, mas com tino, pois «quando ao pescador, dão de beber», «ou já está moído, ou o vão moer».
Eis que a «aurora surge rubra»… é… «vento ou chuva»…; se «primeiro chuva, e depois vento», «à cautela mete dentro»; mas se o «vento vem antes da chuva»… «deixa andar que não tem dúvida»
Interrompe o linguajar para olhar o sopro do vento pois sabe que «volta direita, vem satisfeita»… ao passo que… «volta de cão traz furacão». Não tem muita importância, pois «sardinha de Abril, pega-lhe no rabo, deixa-a ir» e mesmo «não é boa a solha que o pão não molha».
«O vento é de rachar»… aguarda, pois «depressa deve calar».
Dia para ele é aquele do «rosado sol-posto, cariz bem disposto», bem diferente da «vermelha alvorada… que vem mal encarada», pois que «lua à tardinha, com seu anel», «dá chuva à noite, ou vento a granel»; é tempo de amarrar o barco e ir-se abrigar, que «barco amarrado não ganha frete».
Se há «arco-íris ao anoitecer», certo é termos «bom dia ao amanhecer»; «arco-íris ao meio-dia», é certo,dar «chuva todo o dia».
Tudo ao pescador/Arrais serve para ajudar na previsão: o marulhar da onda, o correrio das nuvens, o seu esfarrapar ou o seu engrossamento; os cinzentos claros ou escuros das massas de algodão indicam-lhe as probabilidades do lanço de amanhã. O Arrais é o guardador do rebanho. Inventar palavras para o descrever(?!): para quê se já foram escritas as mais belas, por Maia Alcoforado [1], vertidas com o coração, pois, quando falava do mar, Alcoforado sentia o cachoar enraivecido das suas águas batendo contra a muralha do peito, aniquilando-lhe as saudades.
Do «Aarrais» disse:


Arrais Ançã perscrutando o mar



“Barrete negro, da cor dos aguaceiros, encafuado na cabeça até à encapeladura das orelhas, de borla caída a um lado sobre o ombro, a pendular sorumbática despretensiosa ironia…






O Arrais (aut.João Carlos)

Cachimbo à amurada golfejando novelos de fumo em espalhafatosas cabriolas, que até pareciam de carvão a arder na fornalha enorme dum navio de longo curso.
E a embrulhar-lhe o peito, mais rijo que um cepo, o blusão de flanela salpicado de cores, onde arrecada a onça mail’o cachimbo, os lumes e o lenço d’Alcobaça - quase tão grande como as bandeiras do mariato”…

Triste é o dia em que o «Arrais» vê chegar o bando de Maçaricos, pois é sinal dos céus a indicar que a faina está acabada, que o Inverno está a chegar. Tempo pobre, de privações, de puxar o xávega para o cimo das dunas, recolher os bois, e safar o cordame. E tempo para se agarrar ao remo do botirão, amanhando-se na ria a pescar uns «xarabanecos» com que vai matando a fome aos seus. Tempo de botar faladura na taberna, catando as agruras daquela vida «estipurada» onde um «home bom… na medra»; vida de perigo, vida sofrida, de dor e raiva, onde se praticaram actos de «demência» heróica que imortalizaram esses seres «de forças hercúleas, figuras talhadas no cerne de pinheiro bravo de onde são feitas as cavernas do seu meia-lua». «O ílhavo» da beira-mar que escreveu as páginas mais brilhantes dessa Faina, que a alguns, hoje, parece «A Menor», mas que - bem pelo contrário!!! - por ser tão grande, não caberia sequer nas laudas da Maior.
Como diria o Ançã: «fraldocos»!...

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[1] ALCOFORADO, Maia in «Ílhavo Terra Maruja»




























sábado, 21 de junho de 2008





200 anos da Costa-Nova
(fascículo23)


13- AS GENTES QUE DERAM A IMAGEM À COSTA-NOVA

Julgamos ter ficado perfeitamente sublinhado que se foi a pequena burguesia de cada época que deu estatuto à Costa-Nova, e transferiu a sua imagem para o exterior situando-a no mapa do litoral, apontando-a como um dos pontos em que a natureza se deteve, pródiga e lassa, a derramar torrentes de luz sobre uma ria encaixilhada por uma orla de jardins verdejantes[1], foi, contudo, o pescador da borda do mar, quem lhe deu o retrato.



Grupo na beira-mar (Séc.XX)


13.1- O Lanço na Xávega

Era um espectáculo que atraía multidões, postadas ou alapadas no areal a ver os preparativos, a observar, curiosas, as decisões tomadas pelos Arrais a olharem perscrutadores, o mar, tentando decifrar os seus arremessos e enleios. E que depois, atónitas e espavoridas, e até incrédulas, observavam os empinanços do meia-lua a romper a vaga por entre um coro de gritos e imprecações, vozearias e esgares das mulheres especadas, hirtas, erguendo braços e face ao protector, a clamar piedade ao Divino, até o mar deixar de zangalhar o barquito que lá ia longe deitar as redes, à sorte.






«O Barco da Xávega»

Deslumbrante no seu todo, o lanço da Xávega. Começava com intenso movimento, uma espantável e louca azáfama enrolada no turbilhão dos gritos e imprecações das gentes. E continuada com o portentoso clímax da entrada no mar do meia-lua. Viviam-se momentos de ânsia partilhada, aquando do «estripar» do saco permitindo ver o inebriante espectáculo do peixe em «faiscante» estertor; e tinha momento de ingénua gratificação para os mais novitos, com a «recompensa» de poderem encher o «baldito de lata da praia», com um ou outro lacrau subtraído à rede. Para os graúdos ficava a abundância do pilado fêmea, com que enchiam os nassos para à noite se empanturrarem com o saboroso pitéu.




Retocando a malha da rede







Carregando a rede

Mas tentemos a descrição do «Lanço na Xávega», ainda que sabendo ficarmos longe de o retratar com rigor por carência de fôlego e arte, para dele dar a grandeza impressiva do estendal das emoções que perpassam ao longo do seu desenrolar.
À ordem do Arrais, embarcadas as últimas voltas das «calas», trazidas em rolos nos varapaus pelos ajudantes da Companha, desfilava a rede em «estranha procissão», carreada aos ombros por toda a tripulação






Procissão ombreando a rede

Entra primeiro a manga, depois o saco e, finalmente, segue-se a manga de retorno. É chegada a hora do meia-lua, com todo o aparelho a bordo se fazer à pancada do mar;






Bois e homens na água


para isso é puxado pelos bois para a sua beirada, deslizando obre tarolos que vão sendo sucessivamente apostos na sua proa. Chegado mais perto da rebentação, os homens de terra metem-se pelo mar até aos joelhos e colocam a embarcação já muito perto do farfalho da maré. O Arrais - que não tira o olhar do mar esquadrinhando todo o seu movimento -, espera pelo período das «três vagas sucessivas», a que se seguirá um espraiado. Passada a última vaga, ouve-se o grito: é agora… é agora!…

A Companha em terra dá então o último empurrão com a muleta (vara com aguilhão) que enfia na bica da ré - ou à mão utilizando as bossas da embarcação - num esforço hercúleo para desenvencilhar o meia-lua da areia, e, desse modo, o colocar a flutuar. Com o cabo da fateixa enfiado nos golfiões, evita-se a atravessadela fatal. Eis que a primeira vaga vem beijar a embarcação enquanto se grita num esgar de vozes roufenhas: agora… agora !!!
e lá vai o meia-lua, mar adentro …


O meia lua a romper

até se sentir que o barco já abóia. Os remos entram então na água,tentando em luta desesperada chegar o mais rápido possível à segunda vaga. O Arrais, que não larga o reçoeiro já que este lhe serve de controlo para o correcto posicionamento do barco, de frente para a vaga, ordena, invectivando: - temos maré… força… força… seus calões… desse jeito «aguilhoando» o amor-próprio dos remadores e camboeiros. Por vezes o barco parte lesto demais; é preciso travá-lo; cia… cia, ordena o Arrais, para que desse modo, «borregando», se espere pela vaga. Trilha!… trilha!! grita então, dando a ordem para fixar o remo, e assim se amainar o impulso.
E eis que a montanha de água se abate com fragor na proa recurvada, altiva e desafiadora (!) do meia-lua, que se «encabrita» até às alturas num ângulo medonho que chega a superar, por vezes, os 50/60 graus, ficando apenas apoitado de ré. O farfalho da vaga despedaçada pelo encontrão com a proa que a rasga, faz a água galgar e cobrir a embarcação, «esparralhando-se» por sobre os homens que não param de remar, pés retesados nas recoveiras, em derradeiro sopetão para fugir da quebra do mar. O Arrais de barrete em punho grita: rema, rema… estamos safos. E o meia-lua, lesto, atrevido, toma o rumo do poente, lá para o largo, deixando atrás de si o reçoeiro que ficará «preso», entregue aos camaradas de terra.

Passada a pancada do mar - o ponto crítico de toda a manobra – onde se não percebe se é mais de enaltecer os bravos, se espantar com o seu demente atrevimento, ou respeitar e admirar a intolerância da natureza agreste. Vencida aquela, o barco navega então em águas calmas, avançando compassadamente, parecendo espairecer do esfalfe da luta tremenda, desarcada, hercúlea; e lá vai, empurrado pela força dos remos até ao calamento, momento em que, findo o cambo do reçoeiro depois de largado o saco, é tempo de «abicar» à praia. Não sem que antes se responda ao Pai Nosso reclamado pelo Arrais, que, cabeça descoberta, em acto de fervorosa prece, roga a intercepção do «Altíssimo» para que lhes conceda uma «boa pescaria», no que é imitado por toda a Companha.
Posta (toda) a rede na água ao correr do mar, está na hora de arribar. O calador (espécie de segundo do Arrais, e seu prometido sucessor) vai largando o «cabo de mão da barca» até se chegar à praia. A manobra de aproximação é muito delicada, exigindo toda a atenção e destreza do Arrais, olhos permanentemente postos nas vagas que lá vêm. Se o mar é de lama, o Arrais ordena o volteio, e a embarcação vem nessa posição - de ré - varar (achapar-se) à praia, ficando de novo voltada para o mar, pronta para nova sortida. Se o mar está de «vagalhoça», o Arrais não arrisca; ferra «a volta na ré» e, de pulso firme, vai folgando ou retesando o cabo, conduzindo habilmente a manobra, «guiando o meia-lua» até encontrar a «folga da vaga» que permita varar de queixos, entrando pela praia dentro.

Meia-lua aterrando




A tripulação, lesta, salta para a areia, esfusiante de alegria; as parelhas de bois com o chicote solto - o trambelho - «chegam-se» para permitir enlaçar as guias, e assim, «alar» a embarcação, puxando-a para cima sobre os rolos. Para que depois de volteado - aproado ao mar - «descanse» bem lá no cimo da duna. Onde a maré não tem «esfolfe» para lhe chegar.


Varando o «meia lua»

Começa o «ala arriba» da rede. Que demora um par de horas: - duas a quatro, conforme a distância a que se largou a rede. As várias juntas de bois fortemente aguilhoadas e impiedosamente batidas nos lombos com as varas de tocar, são, pela laçada do chicote, «atadas» aos cabos do reçoeiro e da mão da barca, que, inicialmente separados por umas boas centenas metros, pouco a pouco, se vão «achegando», até que à vista dos primeiros «pipos»[5- as calimas -
As calimas ou pipos

(que indicam a posição das mangas da rede), não distam mais do que uns cinquenta metros entre si. Os animais - uma boa dúzia de juntas -, libertos no cimo da duna são largados em louca correria, em tumultuosa balbúrdia, passando possantes por entre paisanos e «olheiros» que, de repente, se dão conta de estarem na linha de corrida de uma parelha: é tempo de correr para escapar, lestos, aos «cornigeros» animais. Os tocadores incitam-nos em gritaria alarve, fustigando-lhes os costados dum modo violento. «foge... foge... arreda!...», é o grito que se vai ouvindo no meio daquela confusão extrema.
Esforço supremo!..Ó!..Ó!.., arriba …riba …riba …vá .. vááá!. grita o Arrais já rouco de tanto rojar…Eh!.. raios... diabos!... puxa... puxa, vá riba !
E os bois e homens, buscando as últimas migalhas de forças conseguem tirar a sacada do mar que lá aparece, qual ventre de enorme baleia agitada por convulsivo tremor.


Ajeitando as mangas

Eis que o saco (a coada) sobe na areia; todos vão por detrás dele, pés na água da arrebentação, dar-lhe uma espreitadela para avaliar da dimensão da sacada.






A coada arriba à praia

Raramente o pescador se satisfaz, pois que espera - sempre !... - melhor sorte.
É apenas um momento de ansiedade, tempo para um simples esgar e para rogar a praga do seu desencanto, porque logo esquece a estiporada sorte para de novo se envolver na árdua tarefa de levar a rede acima. O Arrais vem sobre o saco, soberano, calcando a pesca até ao «local» onde grita: - alto!; e aí, de navalhão em punho, corta-lhe o porfírio esventrando o «ajuntadouro da rede», deixando ver uma miríade de reflexos, provocados pelo sol a bater no peixe que saltita num derradeiro esforço para se libertar da prisão.
Num primeiro acto, homens e mulheres mergulham as nassas (os xalavares) na sacada, atirando «o peixe» para montes onde são separados por tipo, e depois, metido em cabazes de vime, para, de seguida, ser apregoado.


Enchendo os nassos

Mulherio, curiosos, pescadores e mercantéis, por razões diferentes, começam a «cobiçar» os quinhões, que logo ali são leiloados à voz do pregoeiro - do quem dá mais (?!) - sob o olhar atento do apontador do livro[1] que regista as vendas. Estes pregoeiros tinham com os «mercantéis» códigos estudados, sinais de licitação: - o piscar de olhos, o coçar a cabeça, o tirar do boné etc. - inacessíveis aos curiosos que só participam na licitação do «restolho».




O Guarda-Fiscal vigiando o apontamento das vendas

O peixe é então transportado em cabazes, nos enxalavares [1], carros de bois de duas rodas, muito largas, permitindo-lhes com mais facilidade se deslocarem na areia, conduzindo o peixe para os barcos dos «mercantéis» ou para os armazéns de salga, na beira-ria; ou para ser carregado por almocreves[2] que o irão levar, no mesmo dia, e nessa noite, percorrendo afadigados por entre vales e serras, os caminhos da Beira interior.




- O Peixe nos xalabares ,alinhadas para a venda



O burrico o rapaz e o almocreve

para o entregar, ainda fresco, «amanhã» para a venda. Outra parte do lanço segue para os gigos (cabazes) do peixeiro


O Peixeiro de Ílhavo


«ombreados» numa vara de cerca de dois metros que leva, enfiados nas suas pontas o par dos ditos «gigos», em que se carregam cerca de 50 kg de sardinha para ser vendida no mercado da Vila, ou de Aveiro.
As «pescadeiras», depois de darem uma mão na «safa» do peixe, escolhido


A Peixeira da Costa-Nova

este e logo ali loteado, enchem as suas canastras «atapetadas» por um oleado que evita o escorredoiro, e lá partem estugando o passo numa correria para apanhar a barca da passagem que as levará ao outro lado, à Maluca, de onde partirão ajoujadas ao peso do carrego. Que bem equilibrado sobre a rodilha ou sobre o chapéu de «penache», não necessita sequer de mão para o ajeitar ou segurar. Graciosas, descalças, mãos na cintura, seguem lestas em passo leve mas corrido, até que as primeiras casitas da vila aparecem lá ao longe; é então que da garganta fina, esbelta, orlada de belos cordões e libras d’oiro - seu único derriço! - sai o grito em voz sonora, clara e apelativa, no pregão: “Olha a sardinha da nossa costa! Freguesa!… venha «cumprar q’é do noisso mar”…. E assim vão calcorreando todas as ruas das redondezas até de noite, tempo de chegar a casa mortas de fadiga, mas ainda, com tempo, arte, e folguedo q.b., para fazer um «trauto» com «seu Arrais» no folhelho aconchegado onde se fez mulher… vai para um par de Invernos»…, (…que mulher «d’íbalho» não casa de verão!... não há tempo… nem homes em terra, para tal….)



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1- Moura,Frederico in «Ressonâncias»

[2] GOMES, Marques doc. XXIII in «Campeão das Províncias» - o custo deste transporte, da Companha para os armazéns de salga, era de conta da Companha, paga por fora ao pescador, valor guardado para a pinga “sem direito a que as mulheres o pudessem exigir”
[3] Os Almocreves funcionavam como uma verdadeira organização de transportes entre populações afastadas, especializados na comercialização à distância. Cada cidade ou vila de alguma importância tinha os seus Almocreves, e tinham-nos também, os reis e os senhores.
Grande parte do pescado salgado era levado por barca, da Costa-Nova para Águeda, entreposto de descarga e distribuição, de onde partia para toda a beira interior (Lamego, Viseu, Tondela). Pelo caminho iam suportando as sisas das portagens com que deparavam, impostas pelos forais (outras vezes esgueirando-se às mesmas), viajando em grupo (recova) para protecção contra intrusos. Era ao tempo um transporte rápido - o mais rápido - carregando por vezes para o Porto. Os almocreves podiam ser requisitados pela coroa, ou até pelos concelhos, por um número de dias estabelecido para transportar cargas de que aqueles teriam extrema necessidade. Documento de 15 de Março de 1448 onde é autorizada a entrada de sal de Aveiro, dado os perigos da sua vinda por mar. MORENO, Humberto in «A Acção dos Almocreves» Brasilia Editora Porto.

[4 E na presença obrigatória do Guarda-Fiscal que olhava pela recolha dos impostos
[5 Havia três pipos; dois no inicio das mangas, e um terceiro, o de maior capacidade na boca do saco.